Alexandre Freitas Campos – doutorando em História; mestre em Mídia; especialista em Sociologia Política; assessor de comunicação em políticas públicas.
Estreou no Rio de Janeiro, no mês passado, no festival de documentários É Tudo Verdade, o filme “Brizola”, sobre a vida deste que foi uma das maiores lideranças políticas do Brasil no século 20. Como parte da programação do festival, o filme foi novamente exibido também em São Paulo. A previsão é de que “Brizola” seja lançado no Canal Curta!.
A sessão de estreia ficou lotada. As cadeiras da sala do Estação NET, em Botafogo, não foram suficientes. As cadeiras extras também não foram, e teve gente que precisou assistir ao filme no chão mesmo. Dentre os presentes, algumas lideranças do Partido Democrático Trabalhista (PDT), fundado por Brizola em 1980, como a deputada estadual Martha Rocha, presidente do PDT-Rio. Na tela, muitos nomes clássicos da legenda, que com seus depoimentos ajudam a recontar a história de Leonel Brizola, como Darcy Ribeiro, Miro Teixeira, Nilo Batista, dentre outros.
Ao dar as boas-vindas ao público, Amir Labaki, organizador do festival, disse que “Brizola foi uma daquelas pessoas que só não fez mais pelo Brasil porque não pôde. Se pudesse ter feito mais, nosso país seria muito melhor”. Dirigido por Marco Abujamra e produzido por Mariana Marinho (Dona Rosa Filmes), o filme emocionou do início ao fim em sua exibição de estreia, provocando diversos momentos de aplausos, levando o público às lágrimas, mas também às risadas, com algumas das tiradas espirituosas de seu protagonista, notoriamente conhecido por ter sido um líder político carismático e personalista.
Os realizadores contaram com o apoio do acervo reunido pelo PDT ao longo de suas quatro décadas de existência e com o trabalho de pesquisa do Centro de Memória Trabalhista (CMT), da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini (FLB-AP). Falar sobre Brizola é também contar uma parte significativa da história do trabalhismo brasileiro. Juntamente com Getúlio Vargas e João Goulart (Jango), o fundador do PDT forma o trio emblemático dessa corrente política que, como conceitua o professor Reinaldo Lohn (HISTÓRIA FM 134, 2023), se caracteriza como um conjunto de práticas de reformismo social voltadas para a extensão e ampliação de direitos sociais, com foco nas classes trabalhadoras.
O trabalhismo não pressupõe uma perspectiva de superação do capitalismo, mas a convivência entre o capitalismo e o mundo dos direitos sociais. Isso vai se configurar com muita densidade em países europeus. O caso clássico é o da Inglaterra, que se estendeu para todo o Reino Unido por meio do Partido Trabalhista Britânico. No Brasil, o termo foi apropriado nos anos 30 e 40. A noção internacional de trabalhismo, no caso brasileiro, serve como uma roupagem. Aqui, nossa invenção do trabalhismo tem uma trajetória toda própria, relacionada ao getulhismo ou varguismo. O reformismo social aqui está presente, mas o encaminhamento dessas reformas é distinto, numa trajetória latino-americana.
(HISTÓRIA FM 134, 2023)
A narrativa do filme começa com o retorno de Brizola ao Brasil, em 1979, após um longo exílio de 15 anos no qual ele passou por países como Uruguai, Estados Unidos e Portugal. Naquela ocasião, Brizola retornara a solo brasileiro, sendo considerado o inimigo número um da ditadura militar que o expulsara do país, permanecendo no posto de inimigo número um até o fim do regime. O filme então recapitula a trajetória do líder político alinhado ao então vigente processo de redemocratização, começando por seu nascimento e infância pobre, em Carazinho, interior do Rio Grande do Sul.
Sua formação – graduando-se em engenharia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – e seu ingresso na carreira política são retratados brevemente. Nessa época, em que Getúlio Vargas era a mais notória personalidade política do país, o jovem Brizola entra para o recém-criado Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Após se eleger deputado estadual e federal e prefeito de Porto Alegre, em 1958 o caudilho é eleito governador do Rio Grande do Sul. É nesse cargo que Brizola se notabiliza como defensor do processo democrático, ao coordenar o que ficou conhecido como “campanha da legalidade”. Com a renúncia de Jânio Quadros, o sucessor legal e direto na presidência do país era Jango. Diante da iminência de um golpe, mobilizado por setores das elites conservadoras do país desfavoráveis a Jango, Brizola, aliado ao comando do III Exército, lidera em 1961 civis e militares em uma grande mobilização para que a sucessão presidencial se desse conforme a Constituição vigente à época. Por isso o nome “campanha da legalidade”. Tratava-se de um movimento para a lei ser cumprida.
Naquele momento, o golpismo fora derrotado e Jango assume a presidência. Mas três anos depois, em 1964, os golpistas teriam sua revanche. Jango é deposto. Brizola se propõe a resistir ao golpe, mas Jango, temendo um derramamento de sangue e não vendo alternativa, se resigna com o exílio. O filme pontua bem as diferenças entre as duas grandes figuras trabalhistas daquela época: de um lado, um Jango moderado que parecia acreditar demais na conciliação e na possibilidade de governar com o apoio da direita; de outro, um Brizola mais inflamado, mais à esquerda e disposto ao risco de uma possível luta armada. Golpe posto, ambos têm de sair do país.
O filme enfatiza, deixa claro, inclusive pelas palavras do próprio Brizola, que os golpistas de 64 eram os mesmos que tentaram o golpe em 1961, que por sua vez eram os mesmos que, anos antes, tentaram também golpear Getúlio Vargas. Essa tradição golpista fica bem caracterizada no documentário de Marco Abujamra. Em entrevista, o diretor destacou que Brizola usou seu poder de comunicação para “promover ideias consideradas extremistas e comunistas” pelos setores conservadores. De acordo com Abujamra, “é surpreendente que, em 2024, as mesmas ideias continuem a ser consideradas extremistas por grande parte da população”, disse o diretor [1].
O filme parece sugerir um certo caráter cíclico da história, mostrar as continuidades, um passado que ainda se faz presente. Mesmo após o golpe, durante e depois do exílio, os ditadores não deixaram de dificultar as coisas para o velho caudilho. Em 1980, já de volta ao Brasil, Brizola tenta refundar o PTB para protagonizar à frente do histórico partido a retomada do processo democrático. Mas a ditadura militar, mesmo desgastada àquela altura, consegue dar mais uma cartada e, numa manobra jurídica por meio do Tribunal Superior Eleitoral, é concedido o direito ao uso da legenda a Ivete Vargas, sobrinha de Getúlio Vargas e alinhada aos conservadores. João Trajano de Lima Sento-Sé, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), fala sobre a disputa entre Ivete e Brizola:
O processo de redemocratização foi controlado pelas elites vinculadas aos militares de forma que o poder não escapasse destas mãos. O trabalhismo era o grande fantasma e tinha um nome singular que assustava especialmente: o de Brizola. Os setores conservadores influenciaram decisivamente na vitória judicial de Ivete Vargas. É historiograficamente aceito que a decisão judicial teve clara influência dos militares.
(SENTO-SÉ, 2018)
Derrotado na disputa pela legenda PTB, Brizola funda o PDT. O novo partido, herdeiro do trabalhismo histórico, é bastante influente no processo de redemocratização, agitando as massas por democracia, ou, nas palavras do próprio Brizola, “com essas três letras vamos eletrizar o Brasil”. Aqui temos mais um ponto de destaque na narrativa de Abujamra: os dois mandatos de Brizola como governador do Rio de Janeiro: de 1983 a 1987 e de 1991 a 1994.
O primeiro mandato é marcado pela criação dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), projeto elaborado por Darcy Ribeiro. As unidades, com projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, foram popularmente batizadas de “Brizolões”. A iniciativa era bastante avançada para os padrões do ensino público da época (e até para hoje), com ensino em tempo integral, muitas atividades esportivas, recreativas e culturais, atendimento médico e odontológico para as crianças, dentre outros serviços. Mas uma parcela da sociedade considerava o projeto dos Cieps caro demais. Brizola respondia que “cara é a ignorância”.
Nesse ponto o filme mostra com clareza um embate político que marcaria os mandatos de Brizola no Rio de Janeiro e a esfera pública fluminense: de um lado, os apoiadores de Brizola, aqueles que apostavam na educação e na extensão de um estado de direitos sociais para as camadas mais pobres da sociedade; de outro, adversários de Brizola apostavam na segurança pública e aumento da repressão contra uma criminalidade que, segundo eles, havia se ampliado no Rio de Janeiro comandado por Brizola.
Venceu o segundo grupo e, lentamente, o projeto dos Cieps foi descontinuado. Por outro lado, a situação da segurança pública no estado também piorou. O filme retrata o quanto a má fama com a qual Brizola teve que conviver até o fim de sua vida, de ser um político que contribuiu para o aumento da violência e criminalidade, foi inflada por seus adversários conservadores e pela mídia – principalmente pela Rede Globo. Aliás, o célebre direito de resposta que o caudilho conseguiu na justiça contra a emissora, lido por Cid Moreira no Jornal Nacional, é um dos momentos mais marcantes do documentário e que mais despertou reações da plateia na sessão de estreia.
Cabe acrescentar que, ao ser alvo de uma campanha de desconstrução da imagem enquanto suposto responsável por uma crise de segurança pública, Brizola seria só o primeiro de uma sequência de políticos do Rio de Janeiro desgastados por um tipo de marketing eleitoral folclórico da política fluminense que é a criação da figura do político “defensor de bandido”. Geralmente, essa acusação de “defensor de bandido” recai em políticos de esquerda e centro-esquerda. Brizola foi o primeiro (no Rio, chegaram a apelidar cocaína de “Brizola”), seguido por Benedita da Silva, Fernando Gabeira (“quem fuma e cheira vota no Gabeira”, diziam), Marcelo Freixo e até Marielle Franco, ainda que esta não tenha tido tempo para disputar um mandato no Executivo. Setores à direita tiram proveito desse discurso. Curiosamente, governadores que foram efetivamente parar na cadeia, como Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, não sofreram com essa pecha.
A acusação a Brizola não é amparada em dados concretos sobre criminalidade. Passados 30 anos do fim de seu segundo mandato como governador, a violência no estado do Rio de Janeiro segue alarmante, inclusive com o aprofundamento do problema das milícias e o aumento de sua infiltração no estado. O sociólogo José Cláudio Alves, com pesquisa sobre a violência no Grande Rio, ressalta essa falta de fundamentação na desconstrução da imagem do velho caudilho.
A meu ver, isso é uma espécie de criação de um bode expiatório político. O Brizola tinha uma política de não abuso, não violência contra membros de favelas e comunidades pobres, por conta da própria lógica do populismo, da qual o Brizola vem – herança de Getúlio Vargas, de um poder calcado no popular
(ALVES, 2010).
Mesmo sucateado com o passar dos anos, o projeto dos Cieps ainda influenciaria outras iniciativas de ensino público no Brasil, como os Centros de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (Caics), do governo Collor, e as Escolas do Amanhã, do governo Eduardo Paes no município do Rio. O filme nos mostra a inspiração brizolista sobre os Caics. Nesse ponto, o diretor Abujamra parece superdimensionar o peso da influência de Brizola em Collor como uma das possíveis razões que culminariam no processo de impeachment deste último, ao levantar a hipótese de um Roberto Marinho bastante insatisfeito com Collor pelo projeto das escolas federais, brizolistas demais para o gosto do barão da comunicação. A insatisfação do megaempresário, adversário político de Brizola, teria sido, na perspectiva do filme, crucial para a Globo retirar o apoio político dado a Collor e que anos antes auxiliara a elegê-lo.
Outros feitos de Leonel Brizola recebem destaque no filme, como a criação do Sambódromo, em 1984, que foi cercada de polêmicas e críticas – para variar – das Organizações Globo. “Contrária às novas regras, inclusive o desfile em dois dias, a TV Globo e O Globo boicotaram a obra e praticamente torciam para ela não ficar pronta a tempo. Diariamente, um ‘especialista’ era chamado a opinar para criticar o projeto” [2].
Lançado no ano em que se completam 40 anos de Sambódromo e 20 da morte de Leonel Brizola, o documentário nos ajuda a entender o cenário político brasileiro do século 20 e suas continuidades no século 21. E deixa no espectador uma sensação de que o Brasil seria melhor se Brizola tivesse podido fazer mais, como bem disse o organizador do festival antes do início da exibição. Para quem quiser saber mais sobre Brizola e o trabalhismo, recomendamos o artigo de Ângela de Castro Gomes, cujo nome é justamente “Brizola e o Trabalhismo” (GOMES, 2004). Escrito na ocasião da morte de Brizola, a autora fez indagações sobre o futuro do trabalhismo após a morte do velho caudilho. Tais indefinições persistem 20 anos depois.
Ainda que seja muito difícil saber se ele vai conseguir se transformar e renovar-se para sobreviver, não há dúvida de que o trabalhismo pode ser reconhecido como uma das ideologias e tradições mais importantes da cultura política do Brasil republicano .
(GOMES, 2004, p. 19)
Referências
ALVES, José Cláudio. ‘Os dois segmentos que organizam o crime no Rio – o Estado e as facções – saíram vitoriosos’. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. 10 dez 2010. Disponível em: < https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/os-dois-segmentos-que-organizam-o-crime-no-rio-o-estado-e-faccoes-sairam >. Acesso 11 abr 2024.
GOMES, Ângela de Castro. Brizola e o trabalhismo. In: Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004.
HISTÓRIA FM 134: Trabalhismo: das origens ao seu desenvolvimento no Brasil. Entrevistador: Icles Rodrigues. Entrevistado: Reinaldo Lohn . [s.l.] Leitura
ObrigaHISTÓRIA, 01 mai. 2023. Podcast. Disponível em < https://leituraobrigahistoria.com/podcast/trabalhismo-das-origens-ao-seu-desenvolvimento-no-brasil/ >. Acesso em: 11 abr 2024
SENTO-SÉ, João Trajano de Lima. De Getúlio Vargas a Cristiane Brasil, como o PTB passou do trabalhismo histórico aos ataques à Justiça do Trabalho. BBC Brasil. 31 jan 2018. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42881692 >. Acesso em 11 abr 2024.
Notas
[1] Fundador do PDT, Brizola ganha documentário sobre sua história
[2] O dia que a TV Manchete destronou a TV Globo na transmissão do Carnaval do Rio