Futuro | O moinho e o robô

(Publicado na edição #001, p. 13)

É como se um feitiço tivesse caído sobre o mundo, desde, mais ou menos, o Iluminismo. Estamos enfeitiçados pela ideia de que o ser humano é uma espécie de máquina. Como se pudéssemos ser reduzidos a comportamentos, respostas e modelos. Como se um dia fosse possível replicar a mente humana pela robótica. São sonhos que muita gente tem — e essa gente que os têm não entendeu nada do que é humanidade, nem como funcionam nossas máquinas.

A máquina, por definição, não cria. Ela só produz aquilo que é derivativo, pois a verdadeira força criativa do mundo pertence aos seres capazes de tomarem decisões, ou seja, de fazer juízos éticos. No fundo de todas as ações humanas existe esse ímpeto, aquilo que chamamos de vontade, que é o direcionamento do desejo pelos valores.

Está chegando a hora em que essa nossa mente ocidental e obcecada pelo autômato irá se descobrir decisivamente oposta à máquina. Não por algum tipo de levante dos robôs, como nas mais marcantes ficções científicas dos últimos tempos. É pelo contrário, pela realidade sobre a qual essas obras servem para nos alertar: que nossa civilização se tornou escravizada pelas máquinas porque produz máquinas para escravizar gente. E isso se faz convencendo a gente que a gente é máquina.

Tecnocracia — eis a verdadeira antagonista da política, da democracia e da República. O reinado da técnica. Técnica é gestão, é administração, é o governo através da norma. É o domínio dos especialistas, que vêm dizer que esta ou aquela questão “não é política”, pois a resposta é dada pela técnica. Ora, e desde quando técnica tem a ver com política?

Eles mesmos sabem disso. Eles, que eu digo, são os técnicos e os cientistas. Jamais permitem à política entrar livremente em seus domínios porque sabem que o conhecimento da natureza só acontece quando produzimos grande objetividade. Mas no processo político, que depende de grande subjetividade, não entendem que sua narrativa não carregará nenhuma autoridade além daquela que o povo for convencido a lhe dar. Aí não há novidade nenhuma, é a coisa mais convencional que qualquer filósofo francês é capaz de concatenar antes do café da manhã.

O discurso político do nosso tempo foi tão asfixiado que está quase morto. Deixamos de discutir quem queremos ser e achamos esse debate esquisito. Aceitamos que as ideologias sejam naturalizadas livremente, mesmo quando produzem em nós a angústia coletiva que transformou a Depressão no mal do século.

Os liberais gringos ainda dizem: “é seu direito se matar, não te deveriam impedir”. Ora, aqui nestas terras onde a gente não é boba nem nada, Darcy já dizia: “o Brasil é um moinho de gastar gente”. Pois é mesmo: uma máquina. A gente vai sendo gasta a vida inteira, o potencial criativo da nossa gente, que é exuberante, maravilhoso mesmo, fica relegado à periferia de todos os nossos sistemas. Mas ele é tão forte que come as instituições que criamos na tentativa de afastá-lo.

Pois bem, é um conflito dessa ordem que está para acontecer em todos os lugares com a última dos laboratórios de informática, a Inteligência Artificial. Nascida de verdade neste ano, podemos apostar que dentro de cinco anos estará: a) irreconhecível; b) em todos os lugares; c) transformando novamente tudo que a última tecnologia já tinha transformado.

Já há muita gente com medo. Outro dia, um bando de notáveis que se dizem intelectuais (não aceito que essa ignorância seja considerada coisa da intelectualidade) pediu para interromperem as pesquisas no assunto. Olha essa! Na melhor das hipóteses, uma empresa iria pesquisar tudo sozinha e usar esse saber para espremer o mundo por dinheiro. Na pior, os governos continuariam pesquisando em segredo.

Além de ser uma ideia absolutamente impraticável, é também uma repetição do ludismo, aquele primeiro movimento contra a industrialização e o capitalismo, no qual o povo quebrava as máquinas porque elas eram responsabilizadas pela miséria das relações capitalistas de trabalho desreguladas.

A nova invenção não pode mais ser impedida; é muito eficiente para tal. Temos de decidir o que fazer neste novo mundo que se apresenta quando conquistamos a última fronteira da automação, que é a da inteligência.

Não foi o ludismo, mas a luta política que revelou-se a verdadeira resposta dos trabalhadores para submeter em seu benefício o potencial da automação do trabalho corporal. Da mesma maneira, não adiantará nem a covardia, nem a interdição quando começar a automação do trabalho mental.

Essa automação representa o estágio mais avançado da revolução industrial que é fundada na busca da eficiência do tempo. Nós vivemos hoje uma economia do tempo. Tempo não é dinheiro, porque vale muito mais. É a única coisa que sempre perdemos e jamais recuperamos.

O mundo do capitalismo financeiro avançado é um moinho que gasta a vida do trabalhador. Gasta mesmo, como se ela nunca fosse acabar. Nos grandes centros há gente passando cinco horas em condução para ir e voltar do trabalho. A “jornada” deixa de ser de oito horas e passa para treze. Ainda entra nessa conta o trabalho doméstico, a hora de comer e a hora de dormir. Não sobra tempo ao trabalhador para que busque educação, lazer, cultura ou política.

Isso nem passa pela mente dos mais privilegiados, a quem está permitido morar perto do trabalho e delegar os labores da satisfação do corpo a qualquer criadagem. A vida do trabalhador vira não apenas dinheiro, mas tempo para o desfrute não só do seu patrão, mas de toda uma camada demográfica que vive mais e melhor. Ser rico é, antes de mais nada, dispor de tempo. Poder tirar um sabático ou recomeçar a vida por escolha própria, ou esperar um pouco mais para entrar no mercado de trabalho, ou tirar aquelas férias prolongadas. Ser pobre é medir o tempo em centavos ao invés de segundos, e viver a angústia da mortalidade todos os dias.

O tempo é a matéria prima mais preciosa que há. Por isso, vivemos uma economia do tempo e a ênfase de todas as cadeias produtivas é a produção de eficiência através da padronização de processos. É nisso inclusive que consiste a maior parte das coisas que às vezes chamamos de inovação. A invenção de um processo mais eficiente para fazer o que já se fazia.

É, aliás, apenas através dessa confusão absurda entre criação e automação que é possível aos tecnocratas continuarem dizendo a besteira de que o mercado produz inovação. Invenção é algo que vem invariavelmente de forças estranhas ao mercado e sua lógica de gerência. Só aparece quando entram dinheiro e interesse de gente que toma a decisão de inventar o que não havia.

A eficiência que a padronização dos processos produz se dá pela supressão das decisões desestruturadas, que são nos são forçadas sempre que somos chamados a criar soluções para problemas, porque não há instruções à vista. O mais eficiente é sempre que, se uma solução já existe, seja aplicada. Para um ser humano tal eficiência só é possível após o treinamento, que é um tipo técnico de educação, aquele que só transmite instruções.

É caro e demorado treinar um técnico com conhecimento completo de procedimentos; já a máquina é a própria automação e seu treinamento pode ser automático. Foi esse, inclusive, o verdadeiro pulo do gato da Inteligência Artificial, que só possui os recursos nos quais foi treinada.

Dessa forma, tudo que pode ser automatizado, o será. Para poupar tempo em escala inédita, tornaremos obsoletos, cada vez mais, trabalhos essencialmente técnicos. A única necessidade de seres humanos será sentida nas funções que requerem juízos de valor e responsabilidade.

Essas são justamente as funções criativas, exercidas nos momentos de decisão desestruturada, quando é preciso inventar e descobrir, assumir riscos e demonstrar bom senso.

Os trabalhadores capazes de exercer tais funções não podem passar por um mero treinamento. Eles devem ter uma verdadeira formação: uma vasta educação com amplas referências, que desenvolve muitas inteligências que hoje, para o moinho dos escritórios e firmas, não são valorizadas e ficam relegadas a meros passatempos. Será preciso ter pensamento lógico, razoabilidade, senso estético, saber histórico e muito entendimento de metodologias.

Acima de tudo, a educação do futuro deverá produzir no indivíduo confiança em si mesmo e na sua capacidade criativa. Isso só será possível abandonando os regimes sufocantes de tempo e as ideologias produtivistas que ainda determinam salas de aula de ricos e pobres. O trabalho criativo não tem um só horário nem uma só forma de ser desenvolvido.

O objetivo será formar gestores de grupos, inventores de processos e outros inovadores cotidianos capazes de criar, selecionar e adaptar procedimentos automáticos. Enfim, uma geração que não fica à deriva nas marés imprevisíveis da inovação tecnológica. Esta será a única força de trabalho que fará sentido em um mundo saturado de máquinas.

O que dá a esse novo trabalho a força para sustentar a dignidade do trabalhador é sua fundamentação no acúmulo do conhecimento. É claro que, para isso, será necessária a evolução da pauta social de uma orientação ao tempo para outra, ao Saber.

As grandes empresas de tecnologia que monopolizam essa nova economia são sustentadas pela apropriação do conhecimento, seja através de leis de propriedade intelectual ou da apropriação dos dados produzidos por milhões de seres humanos, inclusive suas falas, suas produções artísticas e culturais e até mesmo as imagens de seus corpos, roubados e transformados em mercadoria espúria.

Só que o conhecimento jamais poderá ser reduzido a reles mercadoria sem grande violência. É que conhecimento não é escasso. É a única coisa que sempre ganhamos e não podemos perder. É algo que se produz por transmissão e só morre quando morrem as pessoas que o transmitem.

Somos criaturas de memória. Ou seja, transformamos o tempo em saber, e através de nossa fala e escuta somos seres capazes de acumular e associar enormes quantidades de informação que alimentam nossa imaginação e inspiram os atos futuros.

Somente descobrindo o que nos faz humanos, a capacidade para o novo e a liberdade fundamental que se encontra na espontaneidade, é que poderemos redescobrir que não somos máquinas. Assim, deixaremos de ser governados.

Eric Andriolo

Jornalista responsável pela Embaúba e doutorando em Ciência Política pela UFF.

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