Herbert de Souza, o Betinho, saiu de cena aos 61 anos de idade em 1997. Como poucos, teve a coragem dos ousados. Foi um pioneiro em muitas coisas, mas uma conserva o seu caráter de coragem: fez a primeira revisão do pensamento religioso do marxismo no Brasil. Do ponto de vista teórico Carlos Nelson Coutinho já dizia que “ser marxista é ser revisionista.” Teorizava dizendo que uma postura ortodoxa só se aplica no método marxista; em relação às ideias tem que ser revisionista. Como na vida, o tempo não para e a realidade muda no mesmo ritmo da moderna tecnologia das forças que produzem a comunicação e a riqueza das nações.
Em tempo em que assistimos crianças naufragando nos mares fugindo das guerras em seus países buscando seu futuro, o Brasil assiste – com um governo de esquerda, petista, sem a autocrítica para rever seus erros políticos – suas crianças naufragarem antes de conseguirem se alfabetizar e construírem seu futuro. Esse fato tem muita relação com a coragem do ato da autocrítica, rever posições políticas para acertar o futuro dessas crianças vítimas da covardia teórica e prática daqueles que se julgam detentores da verdade.
Por isso, esta autocrítica de Betinho continua atual. Com seu jeito frágil de ser, sempre de bem com a vida, de bom humor e cheio de coragem para encarar as dificuldades da vida, ele aparece como um exemplo. Hemofílico, tuberculoso, com saúde frágil, Betinho “vivia uma semana são, três semanas doente” ainda assim caminhou pelas estradas da política e superou tudo. Como sociólogo se antecipou a história e se tornou o precursor do programa Ação da Cidadania contra a Fome que inaugurou uma nova consciência sobre a situação da fome no Brasil.
Em 1978,um ano depois do pacote de abril de 1977 do presidente Geisel, um grupo de pessoas que incorporavam a coragem dos justos, enfrentava os o regime autoritário através de um pequeno núcleo de militantes em torno do MDB Jovem do Distrito Federal. Pessoas como Carlito Michiles, Thaís Alencar, filha daquele que discursou sobre os “filhos órfãos de pais vivos – quem sabe – mortos, talvez, filhos do quem sabe e do talvez”, Sueli Navarro, hábil nos entendimentos, Acilino Ribeiro, o incorrigível revolucionário e Moura, com sua memória viva, formamos um núcleo de militância protegido pelo combativo MDB autêntico e a liderança do deputado Chico Pinto. Esse grupo de jovens iracundos desenvolveu um trabalho político pioneiro em Brasília em favor da anistia política e da inviolabilidade da liberdade individual de ser e pensar.
Reconhecíamos-nos como marxistas, mas na prática agíamos, sem saber, como kantianos para quem não há ser humano sem liberdade. Num tempo em que fazer política significava prisão, tortura e dificuldade profissional. Vivíamos um tempo de utopias e o sonho era realizá-las. Nesse período a vida se desenrolava embalada pelo esforço solidário em fazer da luta pela democracia uma razão de viver.
Neste tempo de agruras lançamos um Caderno Depoimento de um Exilado, em abril de 1978. Quando descobrir e li esse texto de autocrítica de Betinho sobre o pensamento reformista das ideias marxistas procurei contato com o seu irmão Henfil que estava no auge de sua criatividade e fama. Conversamos e disse que faria algumas ilustrações para a publicação do MDB Jovem. Acabou que a publicação, com inúmeras dificuldades e o risco de ser apreendido, o material escrito foi impresso sem a fortuna das ilustrações do Henfil que teria hoje um valor de “aura” de uma obra de arte única.
Betinho expressa sua angustia com o dogmatismo e sua necessidade de rever conceitos que ele herdou de sua formação religiosa cristã e levou para a formação da AP – Ação Popular de inspiração maoista. Essa organização de esquerda das décadas de 1970/80, criada pelo Betinho como alternativa ao PCB que ganhou em expressão social pelo seu conteúdo religioso. Da religião para a política levou a mística que vivia na religião com seu sentido de sacrifício e auto renuncia. Pegavam a revolução socialista de libertação nacional inspirada nas experiências de fora como Cuba e China. Quando adepto da AP ele, num gesto de autocrítica dizia que para um católico praticante fervoroso virar maoista era uma questão de segundos porque Deus era o Mao, o camarada o Chefe, a Bíblia vermelha e a revolução uma miragem inexorável que alimentava a militância.
Num trecho de seu depoimento diz: Durante todo esse período até 1971, de clandestinidade e exílio dentro do Brasil, eu, de fato, não produzi em termos teóricos, em termos de pesquisa e de elaboração, nada que realmente tivesse importância. Estava amarrado por uma camisa de força dogmática que fechava você e dizia: “você não tem nada mais a produzir, você tem que aplicar, porque está tudo respondido”. Se você é um bom aplicador, ótimo, senão, você é um revisionista. Para uma formação ortodoxa o revisionismo é um pecado a ser esconjurado.
Jogávamos o dogma para cima da classe operária e liquidávamos esse possível intelectual de classe, transformando-o numa força de trabalho desqualificada, incapaz. Revisionista, espontaneísta tive desvios de tudo quanto é tipo e finalmente o último suspiro dessa história foi: ponta de lança do neo-revisionismo contemporâneo ou revisionista de esquerda com forte influência militarista cubana. Interessa-me é saber por que se chegou a isso? Creio que foi o resultado de uma perda de pé na realidade. Quer dizer, você manteve a mística, manteve o sentido de compromisso, o espírito de grupo, mas no meio desse contexto todo faltava uma só coisa: faltava à realidade, faltava à política. A partir de certo momento deixou-se de ser político. A realidade política desapareceu. Qualquer coisa que caía em nossas mãos deixava de ser política; as análises deixaram de serem políticas, eram para situar você ou na esquerda ou na direita. Por exemplo, se você citava Lênin não era para discutir a realidade brasileira, mas para detectar desvio. A literatura marxista passou a ser um reservatório da Santa Inquisição. Tinham-se coleções de citações de Mao, de Lênin, de Marx, de Engels para acusar. Ora, se nem a burguesia tinha chances políticas nesse sistema, então que é que ia fazer a esquerda nesse contexto sem ter base social, sem ter força, sem ter armas, para representar os interesses do proletariado e do campesinato?Assim, aparece o terreno da seita, o terreno da mitologia, da imaginação, do voluntarismo e daí o suicídio político e o isolamento. Quando o pessoal recebe a influência política da China, ao mesmo tempo esquece-se da sua própria realidade, não vê a China como uma experiência histórica, mas como um dogma!
O depoimento revisionista de Betinho, publicado por aquele grupo de jovens aguerridos que militavam no MDB Jovem em 1978, completa 37 anos e ainda continua atual pela sua visão e coragem em exercitar o que há de mais nobre na política que é o senso da autocrítica e do revisionismo dos acertos e erros cometidos na luta complexa de realizar utopias possíveis.
Depois de 10 anos voltei a me encontrar com o Betinho nas incontáveis reuniões de acompanhamento da Constituinte de 1987/88 no Ceac/UnB – Centro de estudos e acompanhamento da constituinte que culminou na publicação em 1989 do livro, hoje clássico, Cidadão Constituinte – a saga das emendas populares.
Carlos Michiles