O Brasil passava, ao final da I Guerra Mundial (1914-1918), por um processo singular de industrialização[1]. Com a criação e a expansão das indústrias, aliada à grande leva de migração estrangeira a partir das duas últimas décadas do século XIX, começa, por conta de uma nascente classe operária, a ser impulsionado o movimento sindical, em um curso gradual e progressivo. Um movimento que, gradativamente, gerará facções políticas no interior do operariado, apontando estratégias para a eficácia na obtenção dos direitos sociais.
Por conta do crescimento, ainda que tímido, do processo industrial brasileiro, frente a uma economia agrário-exportadora (com a hegemonia do setor agrário mercantil paulista e mineiro) e a ausência de uma legislação trabalhista[2] capaz de atender as demandas de um operariado em formação, surgem movimentos no meio do segmento operário, com o intuito de reivindicar melhorias na qualidade de vida dos trabalhadores, através da regulação do trabalho laborativo. Dentre tais exigências, se encontravam a diminuição de jornada para 8 (oito) horas diárias e 40 (quarenta) semanais, o auxílio-maternidade e a licença para as gestantes, a proteção para as mulheres e crianças, a criação legal de um fundo previdenciário e a proteção às viúvas e idosos, dentre outras reivindicações pertinentes a relação patronato versos empregado.
Desta forma, diante de uma massa trabalhadora urbana nascente e pela existência de uma leva substancial de imigrantes na região Centro-sul do país (em especial, nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo), eram grandes os conflitos entre os nacionais e os estrangeiros pela procura de empregos. No Rio de Janeiro, na virada do século XIX para o XX, os proprietários de casas comerciais, ramos imobiliários e de transportes eram de ascendência portuguesa. Estes concediam emprego aos seus compatriotas, em prejuízo dos demais brasileiros[3], gerando, assim, graves conflitos de cunho xenofóbico entre brasileiros e comunidade lusa, em alguns pontos, estendida aos imigrantes espanhóis[4].
Até o início da década de 1920, existiam duas fortes correntes[5] no Movimento Operário que disputavam a sua hegemonia: os reformistas (os chamados “amarelos” – incluindo-se, no meio, os positivistas sociais) e os anarcossindicalistas. O grupo associado ao anarcossindicalismo negava qualquer diálogo com o Estado e não o legitimava politicamente, ao acusá-lo de trazer privilégios a setores minoritários privilegiados, violando os direitos da maioria. Organizava-se em sindicatos ou núcleos de fábricas, com o objetivo de implodir o estado capitalista. Para os anarquistas, a partir da ação direta, a criação de uma Greve Geral desestabilizaria o capitalismo e, por consequência desta ruptura, surgiria ulteriormente uma sociedade anarquista. No entanto, os reformistas, em oposição aos anarquistas, defendiam uma maior participação nos canais abertos que a democracia pré-1930, embora limitada, permitia, ao se inserirem nas instituições democráticas como o Congresso, por exemplo, e atuar em frentes ou criando um partido que congregasse os trabalhadores, com o sentido de conquistar amplos setores sociais afins, na busca dos direitos sociais.
Todavia, dentre os reformistas, haviam muitos positivistas, influenciados pelas idéias de August Comte, através do Positivismo Social. Esta visão propunha como concepção de cidadania, a aquisição dos direitos civis e sociais aos trabalhadores, contudo, sem que eles obtivessem os direitos políticos. Assim, para os positivistas sociais, um Estado forte, centralizador[6] e bem orientado ao progresso teria que, em uma “ação iluminada”, incluir os trabalhadores[7] em um papel significativo na sociedade, dignificando-os. A dignidade residiria, então, na melhoria das condições de vida do trabalhador, através da extensão da educação primária aos indivíduos e da proteção à família e ao trabalhador. Dentre outras reivindicações, estaria a estabilidade do trabalhador após um período fixo de serviço, o direito às férias, o descanso semanal, a aposentadoria e outros benefícios de cunho nitidamente trabalhista.
A sociedade seria regida, segundo os positivistas, a partir de um estado forte e através da ausência dos partidos políticos e da própria democracia representativa, nos parâmetros formais da democracia liberal. A ditadura republicana (ou a monocracia) tornava-se a base do governo dos positivistas. A sociedade, para o positivismo, estaria à contramão dos princípios liberais, a partir da ênfase na ordem social, a partir do senso da solidariedade e do cumprimento do dever, e na evolução da sociedade, decorrente destes valores. A máxima positivista estaria presente no slogan: “O Amor por princípio; a Ordem por base; o Progresso por fim.”
Dentre esta disputa, os anarquistas teriam um peso maior. As greves de 1917, em São Paulo, e no Rio de Janeiro, em 1918, mostram o peso de um movimento que, embora vindicativo – sob a égide do movimento anarco-sindicalista –, tinha as suas limitações, por conta da contradição presente na prática ideológica anarquista, entre a conquista do espaço político e o não reconhecimento do Estado, além da negação ideológica do confronto político por seus partidários e adeptos (a prática da “ação direta”).
Com as limitações do movimento anarquista e com o êxito da Revolução Russa (1917), através da criação e do avanço dos movimentos socialistas – juntamente com a criação da III Internacional Socialista (a Comintern) –, surge, no seio do anarquismo brasileiro, um conjunto de lideranças operárias que, simpáticos com os rumos da Revolução Russa e insatisfeitos com as contradições existentes nos projetos e ações dos movimentos anarquistas, fundam o PCB no final de março de 1922, no Rio de Janeiro. A partir do surgimento de um Partido[8] que representasse os trabalhadores e que pudesse ter o papel de “vanguarda da classe operária” – gerando as condições para o avanço deste segmento na construção de um Estado Socialista –, o Partido Comunista do Brasil – PCB disputará o operariado com o movimento anarquista e, gradativamente, terá êxito (mesmo sob pressão do Estado de Sítio com o Presidente Artur Bernardes, entre 1922 e 1926).
Outras alterações podem ser destacadas, no sentido de transformação dos limites presentes na Primeira República – sejam nos acordos políticos entre as oligarquias ou no processo eleitoral. O pacto estabelecido entre as principais oligarquias[9] do Brasil criou a “política do café com leite” que, ao estar reduzida a pactos locais, entre as elites paroquiais[10] e os demais políticos de expressão regional e/ou nacional, originariam distorções no âmbito eleitoral.
Da mesma forma, ocorreram – por conta da ausência de regras definidas no campo eleitoral – as manipulações eleitorais, através do voto de cabresto e do voto do bico de pena[11]. O voto era descoberto e não existia o controle, podendo ser facilmente manipulado o resultado. Embora o sufrágio fosse universal[12], o perfil excludente[13] da eleição, somado à violência[14], fazia com que o pleito fosse esvaziado, resultando de forma passiva, em protestos de uma grande parcela que, avessa a tais práticas, abstinha-se do direito de votar e de influir no processo eleitoral.
Nos grandes centros urbanos, com o surgimento do Movimento Tenentista e a ampliação da voz dos setores médios da população, criam-se vozes alternativas contra a situação vigente. Desde a Campanha Civilista – promovida por Rui Barbosa nas eleições de 1910, passando por outros processos eleitorais conturbados, como o da sucessão presidencial em 1922 –, começou a ser proposto um projeto de perfil liberal mais avançado. Propunham como bandeiras a moralização das eleições – com a criação do voto secreto, direto e universal – e chamavam para si uma maior participação nos rumos políticos do Brasil, em contraposição ao pacto oligárquico entre as principais correntes oligárquicas (São Paulo e Minas Gerais) e as oligarquias satélites.
Entre os setores militares da baixa oficialidade, destaca-se o Tenentismo, que embora se baseasse na proposta de sociedade de viés corporativista e de um governo de solução autoritária, havia pontos de consonância nas propostas destes militares com os setores médios e com a população em geral. Propugnavam para si a mudança do sistema político vigente por meio das armas, exigindo também a moralização do voto e a participação maior na política nacional. Aos setores populares, os “tenentes” chegavam a defender alguns postulados, como a jornada de 8 horas diárias e a criação de legislações de cunho sociais que protegessem os direitos dos trabalhadores influenciados pela visão positivista.
Outro componente para o desgaste da Primeira República, no campo cultural, se fez em São Paulo, no final de fevereiro de 1922, com a realização da Semana da Arte Moderna. Embora houvesse rupturas, na tentativa de criar manifestações artísticas de âmbito nacional[15], a quebra de paradigmas no campo cultural, em um local simbolicamente representado por São Paulo, trouxe marcas que influenciariam, em médio prazo, o desgaste da Primeira República.
Após a Revolta Tenentista, com “os 18 do Forte”, em 05 de julho de 1922, e a criação da “Coluna Prestes” (em meados da década de 1920), apontavam, mesmo com a sociedade brasileira em transformação, que tais passos seriam dados de forma lenta. Lenta, se não ocorresse a Crise da Bolsa de Valores em Nova Iorque, em 1929, gerando sérios obstáculos à economia brasileira, baseada na exportação do café aos principais mercados consumidores (em especial, aos EUA).
Somado a isto, a eleição presidencial de 1930, através da disputa entre a chapa governista de Júlio Prestes e a Aliança Liberal[16] de Getúlio Vargas, trouxe os ingredientes necessários para a explosão da Revolução de 1930[17], de caráter democrático nacional, debelando fragorosamente a oligarquia agrária, com a derrubada do Presidente Washington Luís. Por meio de uma Junta Militar Provisória, Vargas, com todos os poderes conferidos, assumiria a Presidência, no final de outubro de 1930.
[1] Entende-se a industrialização, em pleno período de belicosidade, através do processo da substituição de importações, onde o Brasil produziria armamentos, provisões (alimentos, roupas, etc) e demais equipamentos para os demais países aliados, em substituição à exportação de produtos agrícolas, de onde a principal produção era vendida aos demais países: o café.
[2] Isso não significa que inexistiam direitos trabalhistas; porém, eles eram muito restritos a certas categorias de trabalhadores ainda na Primeira República. Havia também, de forma fragmentada, a extensão de alguns direitos, como, por exemplo, a Lei de Acidentes de Trabalho (1919), a criação de um Conselho Nacional do Trabalho (1923), a Lei de Férias (1925), dentre outras leis surgidas ao longo da década de 1920, como pontos de demandas políticas no âmbito social. Conceição de Góes, com A Formação da Classe Trabalhadora, Cláudio Batalha em O movimento operário na Primeira República e Ângela de Castro Gomes, com A invenção do trabalhismo e Cidadania e direitos do trabalho fazem, em seus trabalhos (além de uma ampla literatura especializada sobre o movimento operário brasileiro nos primeiros anos do século XX), menções claras sobre o processo de construção da identidade do movimento operário que soube canalizar as suas lutas em reivindicações – mesmo com as contradições internas do meio sindical e sob um sistema democrático liberal incapaz de absorver as demandas dos trabalhadores. Mais tarde, no Primeiro Governo Vargas, estas reivindicações teriam maior eco, na criação de instituições políticas e de legislações que ampliassem o espaço de interlocução entre Estado – Trabalhadores.
[3] CARVALHO, José Murilo. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 21, 79-80.
[4] Em São Paulo, vale associar as tensões nas relações de trabalho aos conflitos diretos entre brasileiros e imigrantes italianos.
[5] Estas correntes se destacariam com maior vulto a partir do I Congresso Operário Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro em 1906.
[6] A visão positivista de August Comte seria influenciada diretamente por um socialista utópico, chamado Saint Simon. Sobre maiores detalhes sobre o positivismo no Brasil, ver mais no texto de Claudemir Gonçalves de Oliveira, chamado A matriz positivista na educação brasileira, em http://www.semar.edu.br/revista/pdf/artigo-claudemir-goncalves-de-oliveira.pdf, acessado no dia 21 de fevereiro de 2011, às 17:32h. Igualmente, o texto de Carlos Jorge Paixão (O positivismo ilustrado no Brasil) aponta sobre a linha positivista e as aplicações dela no Brasil, em http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/artigos_revistas/3.pdf, acessado no dia 21 de fevereiro de 2011, às 17:35h.
[7] Sobre a inclusão dos trabalhadores sob a ótica positivista, segue como sugestão a leitura do texto O positivismo de August Comte e seu desdobramento político, de Eliane Superti, em http://www.faeso.edu.br/horus/artigos%20anteriores/2003/superti.htm, acessado no dia 21 de fevereiro de 2011, às 18:10h.
[8] O processo de surgimento de partidos progressistas, que teria como objetivo representar o movimento operário, já existia muito antes da formação do PCB, embora tivessem vida efêmera. Vale citar, dentre literatura especializada sobre os partidos operários na Primeira República as obras: A invenção do Trabalhismo, de Ângela de Castro Gomes e Os bestializados, de José Murilo de Carvalho; Dicionário Histórico Bibliográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
[9] As oligarquias principais durante a Primeira República eram a paulista, por ser a maior produtora de café, e a mineira, por Minas Gerais, ser o maior colégio eleitoral e produtora de leite.
[10] O termo “coronel” remonta à criação da Guarda Nacional, no Período Regencial (1831-1840), onde muitos fazendeiros e líderes locais, para obterem a liderança destas tropas, compravam o título de Coronel e assim exercia as suas funções militares (no sentido de manutenção da ordem), estendendo também, informalmente, o poder político de sua área de influência. Em regiões agrárias, isto se tornou possível com bastante eficácia.
[11] Para ilustrar com mais detalhes sobre toda a dinâmica eleitoral da Primeira República, recomenda-se a leitura de Victor Nunes Leal, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e Professor de Direito da Faculdade Nacional de Direito, com a sua obra clássica Coronelismo, enxada e voto.
[12] Conforme a Constituição de 1891, a extensão do direito ao voto se dava aos indivíduos alfabetizados do sexo masculino e acima de 21 anos.
[13] José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, mostra que, ao contrário das propostas apregoadas pelos republicanos progressistas – através da inclusão política das massas –, a República excluiu uma parcela maior de eleitores, tomando por base a votação na Capital Federal, o Rio de Janeiro. Através da implantação do voto capacitário, baseado no critério de intelectualidade (através da alfabetização ou não), havia automaticamente a perda do número de eleitores analfabetos que eram, até então, aptos a votar, por meio do voto censitário – tendo como requisito a renda do indivíduo.
[14] Nas eleições da Primeira República, os políticos situacionistas chegavam a contratar capangas para intimidarem os eleitores a não votarem em partidários de oposição.
[15] A tentativa de criar obras literárias que valorizassem o Brasil e, em especial, os setores mais excluídos da sociedade, se deu com o Pré-modernismo, presente nas primeiras duas décadas do século XX. Dentre os expoentes principais, havia autores do porte de Euclides da Cunha, Lima Barreto e Monteiro Lobato. A crítica destes estava na visão alienada da intelectualidade vigente, influenciada pelos moldes europeus (em especial, o francês), e com uma visão distante e incoerente do país – ao se renderem aos caprichos de uma pequena burguesia (isto é, setores da classe média) bastante alheia à realidade brasileira. O movimento modernista de 1922 repudiaria as produções literárias, musicais e estéticas influenciadas pelo modelo europeu, buscando identificar o que seria genuinamente nacional.
[16] A Aliança Liberal era formada pela coalizão entre a burguesia industrial em expansão, os setores populares, as oligarquias dissidentes (Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul) e os setores médios da sociedade – incluem-se, neste bojo, os tenentistas. Esta frente era, naquele momento, a oposição ao Governo Washington Luís.
[17] Embora Vargas perdesse a eleição para Júlio Prestes, por meio das distorções eleitorais, o fator político conjuntural que acelerou as condições para a realização da Revolução de 1930 se deu por conta do assassinato de João Pessoa, em meados de 1930. Embora o motivo para o falecimento se desse por razões fortuitas e passionais, o uso político da morte pelos componentes da Aliança Liberal foi o estopim para a conjugação da rebelação em diversos pontos do país.
Wendel Pinheiro