Guilherme Marçal – Enfermeiro, Bioeticista pela Universidade de Brasília, militante da JS-DF.
Natanael Silva – Professor, Doutor em História pela UFRRJ e membro do PDT-Diversidade/RJ.
Os eventos subsequentes a profunda crise política que o Brasil vivencia desde o epicentro das marchas de junho de 2013, que foi paulatinamente cooptada pelos escusos interesses do imperialismo em suas faces mais perversas da sujeição ao sistema financeiro e ao autoritarismo, sempre à espreita na história brasileira, marcaram uma nova era de conflitos e narrativas, dentre elas, as derivas das “lutas identitárias” e os dilemas por ela impostos.
Desde esses conflitos, tivemos o impedimento da primeira presidente eleita, Dilma Rousseff, notoriamente sem crime, e o aprofundamento de uma agenda entreguista neoliberal e anti-nacional, apoiada por grandes veículos de mídia – que, vale lembrar, são concessões públicas do estado brasileiro. Essa agenda foi marcada por contrarreformas – ou deformas – promovidas por Michel Temer no desmonte da Previdência Social e da Consolidação das Leis Trabalhistas, e pelos avanços dos interesses do campo agropecuário, extrativista e minerador – financiadores desses grupos de interesse político – para a destruição de mecanismos de proteção ambiental e a pressão sobre terras indígenas e áreas de proteção ambiental.
De forma ainda mais autoritária e inconsequente, tivemos a eleição de Jair Messias Bolsonaro que, aglutinou, além dos interesses neoliberais, os tentáculos do neofascismo, declaradamente sublinhados na sua frase de campanha “Deus, Pátria e Família”. Esse discurso mobilizou massas hipnotizadas em discursos anti políticos – que se configuram em verdade totalmente políticos – alicerçados em um conservadorismo ignóbil e destrutivo, que irromperam um contínuo de medo e ataques ao Estado Democrático de Direito, na perseguição declarada de opositores e desidratação das Instituições e o flagrante embate entre os três poderes, incluído um protagonismo ambivalente do Poder Judiciário. Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se destacado como o fiel da balança democrática e o último recurso para a manutenção de direitos fundamentais, especialmente em temas morais e identitários, diante da inércia do Legislativo e dos desmandos do Executivo. O STF tem sustentado um nível de aparato legal em questões como o aborto legal no país, a procedência do casamento homoafetivo com igualdade de direitos, o uso do nome social por pessoas transgênero, e a criminalização da LGBTfobia, equiparada à Lei n.º 7.716/89, a Lei do Racismo. Além disso, o tribunal tipificou a injúria racial como crime imprescritível configurado como racismo e diferenciou o usuário do traficante no porte de maconha. Esses temas, frequentemente, retornam aos noticiários frente a processos de restrição de direitos promovidos por grupos reacionários, especialmente ligados à bancada religiosa no parlamento.
Ademais, configuram-se como quarto e quinto poderes, não oficiais, mas centrais na correlação de forças, os componentes das Forças Armadas, da grande mídia e do sistema financeiro. As Forças Armadas, que constituem uma classe apartada e privilegiada, têm se posicionado nos últimos anos como um “poder moderador” em desacordo com os princípios democráticos, em fragrantes proposições de golpe de estado. Já a grande mídia e o sistema financeiro, claros defensores do rentismo e da subordinação nacional aos interesses do Norte Global, impõem uma agenda de contrarreformas sociais e econômicas, de restrição orçamentária e contenção de gastos, enquanto, que mais da metade do produto interno bruto do país é anualmente destinado ao pagamento da dívida pública, beneficiando esse mesmo sistema financeiro. Esses atores exercem uma influência significativa na política nacional, frequentemente em detrimento dos direitos sociais e da soberania nacional.
Neste decurso de tempo, sobrevivemos à maior pandemia do século, que somente no Brasil flagelou mais de 700 mil vidas – das que foram oficialmente contabilizadas. Esse número não foi maior devido à luta que se fez do Sistema Único de Saúde a última trincheira de resistência frente ao genocídio que partia o tecido social dessa nação. Imbuído em tantas feridas abertas, o Brasil transformou-se no espelho de um triste retalho sujo e ensanguentado.
Mas por que iniciar um texto sobre a questão identitária focalizando nesses acontecimentos?
É exatamente no ínterim desses eventos que a discussão sobre identitarismo nasce. Esses fatos, aqui particularizados no Brasil, mas que tendem a ter correspondentes em todo o mundo, constituem o caldo programático de onde, especialmente a esquerda, se vê profundamente desafiada.
A ascensão da extrema-direita entre 2016 e 2022, com figuras como Trump nos Estados Unidos, Netanyahu em Israel, Orbán na Hungria, Erdoğan na Turquia, Giorgia Meloni, na Itália, entre outros, implicou sucessivas derrotas para a esquerda mundial. Esses eventos mobilizaram o campo – em suas diferentes matizes ideológicas – a discutir, de forma necessária e atual, seus métodos, práticas, capacidades de luta e mobilização, além, é claro, de seus acertos e, principalmente, seus erros.
Entre os inúmeros erros da esquerda, um grande problema que se projetou nos últimos anos é o chamado “identitarismo”. Ocupando o centro dos debates políticos no Brasil, muitos discursos, em sua maioria de caráter reacionário, costumam denominar de “identitário” todo movimento social em torno de lutas civis como uma maneira de desqualificar e deslegitimar as lutas emancipatórias protagonizadas por grupos historicamente marginalizados e excluídos da cidadania plena. Esses grupos incluem mulheres, negros, LGBTs, povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, e pessoas de religiões de matriz africana, entre outros segmentos minorizados. Eles são frequentemente acusados de dividir a sociedade ou de serem agentes infiltrados de uma política de dominação estrangeira, principalmente de origem estadunidense, no que seria a chamada “agenda woke”. O termo “woke”, que ressurgiu nos protestos Black Lives Matter em 2020, significa “consciência sobre temas sociais e políticos”. No entanto, a capitulação dessas pautas por atores liberais assépticos e individualistas acaba por recriar uma hierarquia de moral pautada em políticas de “cancelamento” midiático e “polícias de linguagem”. Isso configura importantes tensões entre “progressistas vs conservadores”, resultando na diluição das pautas fundamentais dos direitos humanos em questões individualizadas que não representam necessariamente os interesses e bandeiras históricas dos movimentos por direitos sociais. Essa dinâmica cria um ambiente onde as lutas identitárias são vistas como fragmentadoras, desviando o foco de uma agenda mais ampla de justiça social e econômica.
Conhecido também como “políticas de identidade”, este fenômeno, que emergiu no fim do século XX, como uma resposta às demandas de grupos historicamente marginalizados, trouxe à tona a necessidade de repensar estratégias e abordagens políticas.
Vale contextualizar que o identitarismo é um discurso ou método presente tanto na direita quanto na esquerda. No primeiro, tem-se a projeção de um nacionalismo ufanista, através de uma preservação da identidade e costumes baseados na aversão ao “outro” e valorização da tradição. No caso da esquerda progressista, o identitarismo está pautado por grupos de luta de direitos civis, entretanto, estes imersos nas contradições das sociedades capitalistas e de super individualização, tornaram suas lutas desconexas do caráter coletivo, sindical ou de classe, da qual se teceu as bandeiras da esquerda clássica. Ou seja, o identitarismo denomina um processo sociopolítico no qual focaliza-se um único traço de identidade na construção de uma agenda política.
A crítica ao identitarismo, muitas vezes, reside na percepção de que ele fragmenta a luta coletiva em prol de causas específicas, desviando o foco de uma agenda mais ampla de justiça social e econômica. Grupos reacionários frequentemente assimilam essa mesma crítica em ataque à esquerda e aos “grupos identitários”, fomentando discursos de ódio e supremacia, especialmente no campo das redes sociais e, mesmo, nas ruas, ao tomarem símbolos nacionais e os imbuir de significados reacionários.
Elisabeth Roudinesco, em seu livro “O Eu Soberano: Ensaios sobre as Derivas Identitárias”, discute que, apesar da positiva afirmação identitária em combater flagelos e opressões, contra grupos “minorizados”, o identitarismo apresenta como inflexão negativa a hipertrofia do “eu”, condicionando os indivíduos a um único traço identitário e pormenorizando-os em grupos sectários isolados, hierarquizados e pulverizados, que condicionam, em última instância, um reforço à manutenção das desigualdades, em detrimento aos seus próprios objetivos emancipadores.
Neste campo, caindo no próprio jogo da direita, a esquerda clássica abraçou a crítica ao identitarismo como um fantasma e óbice de todos os seus problemas. Ora, o identitarismo como prática política tem seus problemas, isso é inegável, por sua vez, as lutas emancipatórias protagonizadas por grupos antes silenciados, constitui uma poderosa ferramenta de luta, isto também é inegável. É crucial reconhecer que as lutas emancipatórias advindas das identidades também representam uma tentativa de dar voz e visibilidade a grupos que, por muito tempo, foram silenciados e excluídos. Sendo, nesta década, pós-projetos revolucionários mais audaciosos, e do assentimento da sociedade com projetos de social-democracia liberais das quais no início deste século que sucumbiram as platitudes do neoliberalismo, que as lutas identitárias configuram novas formas de luta e conquista de direitos.
A tensão entre a necessidade de uma luta unificada e a importância de reconhecer e valorizar as diferenças é um dos grandes desafios enfrentados pela esquerda contemporânea. Em exemplo, um dos líderes do Partido Democrático Trabalhista (PDT) em uma de suas críticas ao identitarismo afirmou que “a soma desses interesses identitários não representa o interesse nacional”. No entanto, não é factível considerar mulheres, negros, indígenas e LGBTI+ como “minorias”, na realidade, a verdadeira minoria é a elite burguesa, que em apenas cinco famílias condensam a riqueza de mais de 100 milhões de brasileiros, constituindo uma das mais altas concentrações de renda do planeta. Quem, afinal, é minoria ou maioria neste país? Dessa contextualização, qual é não o interesse nacional de desenvolvimento, emancipação e democracia, se não desses grupos historicamente minorizados, silenciados e perseguidos pela minoria da elite antinacional? É da constatação deste fato, que Josué de Castro já nos alertava: “metade da humanidade não come; e a outra não dorme, com medo da que não come”.
Portanto, a discussão sobre identitarismo não é apenas uma crítica, mas também uma oportunidade de reflexão e aprimoramento das estratégias políticas para construir um futuro mais justo e inclusivo. Em 2024, ano de grandes discussões nacionais, pela primeira vez em 20 anos, a necessária agenda da reforma tributária avançou e ganhou grandes apoios na esfera legislativa e do executivo. Em 30 de outubro, durante a votação na Câmara dos Deputados, uma emenda que propunha a cobrança de imposto sobre grandes fortunas de bens de valor superior a R$ 10 milhões foi rejeitada por 262 votos a 236. A emenda, do deputado Ivan Valente (PSOL-SP), veio de um dos partidos mais julgados por sua característica mais “identitária” em contraste com a esquerda clássica.
Em novembro, vivenciamos outro fenômeno de reação e insurgência das massas populares frente a décadas de desmonte de direitos sociais, na luta contra a escala 6×1, impulsionada pelo movimento “Vida Além do Trabalho”. O projeto, de Érika Hilton (PSOL-RJ), uma mulher trans negra, que não limita sua luta a esses marcadores, reuniu até o momento 216 assinaturas, mais do que as 171 necessárias para ser protocolado. A proposta gerou forte mobilização e constrangimento da direita, que perdeu a narrativa do discurso e enfrentou o tribunal das redes por seus próprios pares.
Esses eventos concretos demonstram duas coisas: a paralisia da esquerda tradicional, que, absorta em discutir seus erros – quando o faz – e na tentativa exógena de encontrar culpados, focaliza seus erros no “identitarismo”. Em segundo, essa esquerda, paralisada, mesmo que programaticamente defenda agendas mais ambiciosas e emancipatórias mediante um Projeto Nacional de Desenvolvimento, caminho comum de discurso de socialistas, trabalhistas e alas comunistas, não avança estrategicamente nestas pautas, estando reféns das amarras políticas e econômicas. Ao que, os avanços nestas pautas civilizatórias, são então protagonizadas exatamente por aqueles que são taxados de “identitários”, o que impõe uma importante contradição para a esquerda tradicional.
Neste momento precioso da história nacional, em que pese a complexidade e desafios do governo Lula 3 e sua asfixia pelo centrão e o jogo de emendas, torna mais do que nunca a necessária afirmação de projetos emancipatórios, e não o jugo dos erros pelas lutas dos oprimidos.
Essa esquerda precisa sair da paralisia e pautar aquilo que sempre lutou: um grande projeto nacional, democrático e libertador. Lembramos de propostas audaciosas, como um novo código do trabalho, auditoria da dívida pública, a reindustrialização do país, novas políticas fiscais, construção do complexo nacional da saúde, o fim do arrocho contra os mais pobres e a proposição de uma educação emancipadora, criativa e plural. É fundamental, avançar em uma agenda de representatividade e protagonismo, que reflita a pluralidade e diversidade de gentes deste país, entretanto, em que pese a relevância dos marcadores sociais das diferenças, suas interseccionalidades e singularidades nas trajetórias dos indivíduos, a representação e luta social por direitos de grupos socialmente minorizados, deve partir de uma lógica coletiva e não individualizada.
Isto somente é possível com projeção de consciência de classe e um compromisso com um projeto nacional de real emancipação. É crucial que essas novas lideranças compreendam a interseccionalidade das lutas sociais e econômicas, ao integrar as demandas identitárias com a luta de classe, podemos construir um movimento mais coeso e eficaz, capaz de enfrentar as desigualdades estruturais. Assim, a questão central não é só pelo que se luta, mas como se luta.
Referências Bibliográficas
AMARAL, Luciana. Fim de escala 6×1: Erika Hilton procura governo e diz que tramitação pode ficar para 2025. CNN Brasil, 13 nov. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/fim-de-escala-6×1-erika-hilton-procura-governo-e-diz-que-tramitacao-pode-ficar-para-2025. Acesso em: 18 dez. 2024.
BBC. O que é ‘woke’ e por que termo gera batalha cultural e política nos EUA. BBC News Brasil, 13 ago. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy4y82w737do. Acesso em: 18 dez. 2024.
BEHNKE, Emilly; BORGES, Rebeca. Câmara rejeita imposto sobre grandes fortunas na regulamentação da tributária. CNN Brasil, 30 out. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/camara-rejeita-imposto-sobre-grande-fortunas-na-regulamentacao-da-tributaria. Acesso em: 18 dez. 2024.
BEAUD, Stéphane; NOIRIEL, Gérard. O impasse das políticas identitárias. Le Monde Diplomatique Brasil. 28/12/2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-impasse-das-politicas-identitarias/
CAMPOS, Luiz Augusto. O fim do identitarismo. Nexo Jornal, 02 out. 2023. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/o-fim-do-identitarismo. Acesso em: 18 dez. 2024.
COLLING, Leandro. Os novos discursos críticos às identidades e a crise nas universidades. Le Monde Diplomatique Brasil. 25/10/2024. Disponível em: https://diplomatique.org.br/os-novos-discursos-criticos-as-identidades-e-a-crise-nas-universidades/
FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Política & Sociedade, Florianópolis – v. 17 – nº 40 – Set./Dez. de 2018.
KAYSER, Erick. Jessé Souza e o fantasma do “identitarismo”. Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 17 out. 2024. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/644876-jesse-souza-e-o-fantasma-do-identitarismo-artigo-de-erick-kayser. Acesso em: 18 dez. 2024.
MISKOLCI, Richard. A crise da hegemonia identitária nas universidades.Le Monde Diplomatique Brasil. 22/10/2024. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-crise-da-hegemonia-identitaria-nas-universidades/
NOMURA, Bruno. O que é o ‘identitarismo’ e por que ele preocupa a política tradicional. Diadorim, 16 set. 2022. Disponível em: https://adiadorim.org/noticias/2022/09/o-que-e-o-identitarismo-e-por-que-ele-preocupa-a-politica-tradicional. Acesso em: 18 dez. 2024.
SILVA, João. Por que a esquerda não entende o identitarismo. Blog da Boitempo, 30 out. 2024. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2024/10/30/por-que-a-esquerda-nao-entende-o-identitarismo. Acesso em: 18 dez. 2024.
SILVA, Maria. Crítica à crítica do identitarismo. Blog da Boitempo, 01 out. 2024. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2024/10/01/critica-a-critica-do-identitarismo. Acesso em: 18 dez. 2024.