Angela Maria Rocha – Jornalista e escritora
Início dos anos 80. Tudo andava a passos largos no Brasil e na minha vida. A anistia trazia de volta ao País figuras históricas como Leonel Brizola, Prestes, Betinho, Fernando Gabeira e muitos outros. Ainda na faculdade e ansiosa por participação entrei de cabeça na formação do PDT.
Foi um momento muito rico no país. Depois de vários anos de ditadura e silêncio havia um anseio coletivo pela fala. A Cinelândia virou uma espécie de tambor político e dentro desse mote, para nosso orgulho, nascia a Brizolândia. Um espaço democrático de discussão.
Era a boa política colocada em prática. Os debates eram acalorados, juntavam pessoas, o microfone circulava entre afins e discordantes. O final geralmente era no Amarelinho com um chopp gelado. O Presidente da Brizolândia era o Pernambuco, um ex militante do PSB e do PTB, perseguido por anos pela ditadura militar.
Durante esse período, sai e entrei em muitos empregos e acabei indo trabalhar na sede do partido com a então secretária geral do PDT, Carmem Cynira. Carmem respirava política. Era uma mulher aguerrida de personalidade forte, mas meio mãezona também, tudo na medida certa.
Um dia estou em casa de manhã e meu telefone toca. Uma voz cordial se identifica como repórter da “Folha de São Paulo” e explica que fazia uma matéria sobre a Brizolândia e que para fechar o texto precisava do nome completo do seu presidente, o Pernambuco.
-Me deram seu telefone. Continuava ele, como a jornalista que trabalha com a direção regional do PDT.
-Ernani Correa de Souza, respondo fácil, me sentindo importante e feliz de ver que o trabalho do companheiro seria reconhecido.
-Ele deve ser nascido em Pernambuco. Certo? Indaga
Por algum motivo naquele momento me veio uma sensação estranha. Não respondo. Fico muda enquanto minha cabeça é invadida por pensamentos.
A voz retorna, dessa vez sem o tom cordial anterior. Me pareceu sombria. O comentário soava quase que como uma ameaça, quando falou:
-OK. A gente ainda vai se ver por aí. Ouço um clic de telefone sendo desligado do outro lado da linha.
Gelo. Naquele momento senti uma pequena fração de todo aquele medo silencioso que a atriz Fernanda Torres mostrou tão bem no filme Ainda Estou Aqui e que me levou de volta ao passado. Era um medo real. Aquela voz estava dentro da minha casa.
Minhas filhas entram correndo e me despertam daquele pesadelo. Saio de casa às pressas e vou correndo para a sede do partido. No caminho, passa tudo pela minha cabeça, até a opção de esquecer o acontecido e não contar a ninguém.
Entro na sala da Carmem Cynira e fecho a porta. Ela estranha. Sua sala vivia aberta a todos. Sento e conto em detalhes o telefonema, corroída pela vergonha. Eu tinha entregado o nome de um companheiro que foi perseguido pela ditadura.
-Não existe matéria alguma. Já chequei. Explicava.
-Como pude ser tão tola? Repetia
Carmem percebe o meu desconforto e fala devagar, tendo o cuidado de olhar fundo nos meus olhos:
-Fica calma. O Pernambuco não vive mais na clandestinidade. Pode ser encontrado toda semana, na Cinelândia. É um homem vivido e experiente. O importante é a gente saber que ele está no radar.
Dias depois Ernani Correa de Souza é detido na Cinelândia e levado para a sede do DOI -CODI – Departamento de Operações de Informações- Centro de Operações de Defesa Interna- para esclarecimentos.
Por “coincidência”, ele estava com um advogado do PDT que o acompanhou até o local. Vários deputados e vereadores de diversos partidos, já estavam avisados e correram para a sede do DOI-CODI. A imprensa chegou em seguida. O fato virou notícia.
Nada aconteceu com o companheiro que foi liberado horas depois. Essa história como muitas outras ficou esquecida. Mas a arte tem esse poder avassalador de nos revirar por dentro e trazer à tona memorias perdidas.
P.S Carmem Cynira trabalhava basicamente com jovens. Foi uma escola para mim e para muitos outros. Ela costumava dizer uma frase que eu nunca soube se era autoral ou tomada para si, por direito:
“Nós estamos vivos porque “eles” – lê-se os militares da ditadura – apesar de cruéis e covardes, eram também muito burros”.