Manoel Dias é um dos poucos remanescentes daqueles políticos que exercem o ofício por paixão. Aos 77 anos, guarda o espírito de quem acredita e luta para realizar seus sonhos de um mundo melhor
A ARTE DE FAZER POLÍTICA
Manoel Dias é um dos poucos decanos da política nacional que é respeitado e admirado tanto por quem é alinhado com suas ideias como por quem se opõe às suas posições
*Por Mauro Cassane
Há quem faça política por necessidade, muitos praticam por interesses, outros, ainda, se envolvem na política por oportunidade. Mas raros são aqueles cuja vocação, em essência, é a política pura. Estes, sim, são os verdadeiros homens públicos. São humanos que nasceram com este dom, lapidaram-se na sociedade e se tornam, naturalmente, políticos. Não tem nada a ver com artistas, empresários ou esportistas que, na oportunidade, ou necessidade, se valendo de alguma projeção ou fama, resolvem enveredar-se em uma carreira pública.
A natureza política é manifestada logo na infância e aflorada na adolescência. É um dom. Da mesma maneira que é possível detectar um novo craque do futebol simplesmente ao assistir a uma pelada entre garotos, também é fácil perceber quando um jovem tem real inclinação para seguir, com êxito, na vida pública, durante sua fase de estudante secundarista. E políticos assim, remotamente, se envolvem com qualquer tipo de desvio de comportamento uma vez que exercem com honra e desmesurada paixão o papel de representantes legais de sua comunidade, vilarejo, cidade, estado ou nação.
Para o número 1 desta VerBrasília, em nossa reunião de pauta, discutimos vários temas que estão abordados nesta edição histórica e a discussão ficou mais calorosa na hora de definir quem seria o personagem da capa. A ideia de capa, primordialmente, é fazer, em cada edição, um perfil de uma personalidade de Brasília. Há, por certo, na cidade, grandes artistas, empreendedores, socialites e, naturalmente, bons políticos. Foi então que a discussão se enveredou para um grande desafio: em um momento muito especial de grande crise de identidade da política brasileira que tal um perfil de um político que seja, na essência, um político! Isso mesmo, aquele que não está na política por ser espertalhão, ou por necessidade, ou por ser famoso, mas que tem o verdadeiro dom da política. O homem político de verdade. Desafio topado, nos lançamos em campo na busca de bons nomes.
Tarefa árdua. Pesquisa na internet, conversas informais com analistas, com decanos jornalistas do setor e chegamos a um veredito: teria que ser alguém da velha guarda, mas que mantivesse, no espírito, ainda muito vivaz, a paixão pela política. Seria legal não ser arrogante, ser um sujeito acessível e, no trato, que tivesse uma simpatia natural e não aquele clássico sorriso evidentemente falso com o qual somos confrontados na lida com certos políticos profissionais. Foi quando surgiu, então, um nome: Manoel Dias, um dos fundadores do PDT, e que, em setembro, quando discutíamos este tema, estava à frente do Ministério do Trabalho e Emprego. Todo mundo sabe que político, na entressafra de eleição, não é exatamente um ser muito acessível. Imagina, então, um ministro. Resolvemos tentar. Surpreendentemente, depois de um pedido formal à sua assessoria de imprensa, explicando didaticamente nossa pauta, Manoel Dias se mostrou não só acessível como sensível à nossa tarefa de encontrar um político da velha guarda que tenha, de verdade, este dom tão raro. Mais do que dar uma entrevista, o que já seria muito bom, o ministro nos convidou para jantar.
Como é a primeira matéria, e com a importância de ser capa, decidimos ir os três diretores, já que somos, todos, jornalistas. Fomos, então, eu, a Marta, diretora administrativa, e a Evelyn, diretora institucional. Nosso amigo Ruy Motta, que foi quem nos indicou o nome do ministro, e que também é amigo pessoal do Manoel Dias, também foi, até mesmo para, com a presença dele, abrandarmos o clima de entrevista e criarmos um clima mais informal, como um encontro entre amigos. Deu muito certo. Aliás, deu tão certo que, melhor que uma entrevista, travamos uma longa, animada e sincera conversa de mais de três horas. Nosso primeiro contato com Manoel Dias, popularmente conhecido como “Maneca”, muito nos impressionou afinal de contas estávamos diante de uma lendária figura política que, nas palavras, no jeito humilde, na simplicidade e, particularmente, na sincera simpatia, reunia todos os predicados que tanto procurávamos. Deixamos bloco de anotações e gravadores de lado. E curtimos prazerosamente a prosa com um mestre, como aqueles antigos ensinamentos peripatéticos dos antigos filósofos com seus discípulos.
Entendemos naquela inesquecível noite que traçar um perfil deste homem não seria pelo tradicional meio jornalístico com perguntas e respostas, muito comum em uma entrevista convencional, mas sim, pelo jeito mais secular e agradável, a boa e velha prosa. Três experientes jornalistas teriam material suficiente para escrever oito páginas de perfil com tudo o que conversamos naquela noite, mesmo sem termos anotado uma única linha. Manoel Dias, sem ser formal, apenas com seu jeito humilde e cativante de prosear, sempre diz coisas interessantes. Uma conversa despretensiosa com ele é saborear a essência da história política do Brasil dos últimos 50 anos. E bote história nisso! Maneca nasceu para ser político. Está em sua natureza. É seu hobby. É sua paixão. É, por mais impressionante que isso possa parecer, seu prazer de viver. A noite foi mais do que perfeita. Houve empatia entre nós todos. E o ministro nos convidou para um fim de semana em sua casa na paradisíaca Florianópolis.
E, é bom logo explicar, não foram aqueles convites de certos políticos do tipo “aparece um dia lá em casa”. Antes de finalizarmos o jantar, Manoel Dias tratou de pedir à sua equipe de assessores de imprensa, que o acompanhava, para verificarem sua agenda de compromissos. Data marcada, Maneca se despediu dizendo “então espero vocês lá em casa”. Uma grande honra. Em 30 anos de jornalismo foi a primeira vez que faria uma entrevista na casa de meu entrevistado e em um fim de semana. 15 dias depois desembarquei com o fotógrafo em Florianópolis. Em uma bela manhã de sábado, pontualmente às 9h, estávamos, eu meu velho amigo Haroldo Nogueira de Sá, no apartamento do Ministro. Quem nos recebeu foi seu fiel escudeiro, Laudelino Pereira, mais conhecido como Xexéu, auxiliar e amigo que o acompanha há mais de 30 anos. Depois de conversarmos um pouco sobre a centenária figueira que enfeita o prédio onde mora o Ministro, Manoel Dias chegou na sala, de calça jeans, camisa social e um elegante blazer. Cumprimentou a todos com seu jeito simples e cativante, perguntou ao fotógrafo qual o melhor local para se sentar e, em minutos, mais uma vez abandonando o protocolo que rege as entrevistas, travamos ali uma boa prosa só eventualmente interrompida por Dona Dalva, sua esposa, cujas interferências providenciais serviram para avivar a memória de Manoel. Bons papos são longos. Conversamos por quatro excelentes horas. E Dona Dalva, atenta, diligente, elegante, sensível e resoluta, mais do que acompanhar, assessorou, fez intervenções pertinentes, ajudou-o nas lembranças mais remotas da juventude, fez objeções com relação a alguns pontos de vista do Ministro e demonstrou, ali, o quanto uma grande mulher pode fortalecer ainda mais os alicerces de um grande homem.
Observar o casal já mereceria, sem dúvida, um capítulo à parte. São apaixonados, divertidos, espirituosos e, na conversa, guardam resquícios de um período em que ambos eram jovens prontos para bradar com fé, e sem temor, suas posições políticas e convicções sociais. Se conheceram muito jovens, Dalva ainda ávida para chegar à maioridade, e Manoel vivendo intensamente sua lira dos 20 anos como ativista da mais genuína esquerda política. A paquera começou em uma festa de São João, em Içara, cidade natal de ambos, no interior de Santa Catarina, em 1959. O pai de Dalva, Jorge Elias de Luca, de família tradicional, muito politizado, homem de opinião, como a maioria dos pais, não manifestou nenhuma animação com o pretendente da filha metido a revolucionário. Mas a menina, indômita e destemida, já sabia que deveria seguir os impulsos do coração e estava verdadeiramente encantada com aquele rapaz tímido, de bom papo e cheio de ideais por um mundo melhor. “Ele sempre teve muito charme”, diz Dalva, exibindo um cintilante brilho nos olhos. Sete anos depois, no agitado ano de 1966, época em que os jovens chacoalharam toda a sociedade mundial e se levantaram contra o que até então se entendia como “bons costumes”, casaram-se.
Algumas horas de conversa solta com estes dois fica fácil imaginá-los nos combatentes anos 60, contestando valores arraigados, enfrentando a carranca repressiva e reacionária de uma ditadura militar bem pouco afeita a diálogos e totalmente avessa a qualquer princípio democrático. Não era nada fácil a vida de político naqueles tempos de ditadura. Quem tem menos de 50 anos tem alguma dificuldade para entender quanto era preciso coragem, espírito combativo e, fundamentalmente, engajamento político para enfrentar a opressora força dos militares que tomaram de assalto o poder no Brasil. Eles batiam sem dó nem piedade. Não tem nada a ver com escrever frases de protesto no Facebook dentro do conforto e da segurança do lar. Foi a triste época das cassações dos direitos políticos, dos exílios, das prisões e, vergonhosamente, da tortura e assassinatos aos oponentes. Naqueles tempos não havia nenhum espaço na política para quem a buscasse por interesse ou necessidade. Era preciso muita coragem e verdadeiro idealismo para encarar uma militância política. Manoel e Dalva estavam entre aqueles jovens idealistas que tiveram coragem de se manifestar, de se opor, para mudar o País, para que jovens de hoje possam ir para as ruas contestar sem o risco de perderem a vida ou a liberdade.
Ainda muito jovem, poucos anos antes de se casar, Manoel Dias já estava engajado na luta pelos direitos dos mineiros de carvão de sua região. Em 1962 elegeu-se vereador por Içara. O partido era o PTB, que, à época, se alinhava literalmente com o trabalhismo. Mas dois anos depois de sua primeira incursão na política veio o Golpe Militar e, sem demora, começaram as cassações de políticos oposicionistas. Manoel, totalmente ligado à causa dos trabalhadores das minas de carvão, além de cassado foi, em seguida, preso. Ficou no cárcere por quase um ano. Dalva, então sua namorada, lhe escrevia sistematicamente cartas e bilhetes. “Gostava de lhe escrever que ‘homem algum é uma ilha’, para lhe dar força, para dizer que eu estaria sempre ao seu lado”.
Na época da repressão as dificuldades foram inúmeras. Depois de julgado e absolvido, Manoel retomou sua cadeira na câmara dos vereadores e, por suas convicções socialistas e espírito de liderança, foi eleito presidente da casa. Mas as famílias tradicionais não viam com bons olhos o casal de agitadores políticos. Dalva, como professora de escolas primárias, sentiu na pele o peso do preconceito de uma sociedade fundamentalmente reacionária. “As mães tiravam os filhos da minha aula porque temiam que eu os contaminasse com ideias comunistas”, recorda. “Muitos que se diziam amigos se afastaram da gente naquela época”, conta Manoel. Mas, mesmo sendo um incômodo para os militares e “persona non grata” para as famílias tradicionais que temiam perder o “status quo”, Maneca conquistava cada vez mais apoio da classe trabalhadora, em particular nas minas carvoeiras. Em 1966, já casado, foi eleito deputado estadual. “Se tem uma palavra que define bem aquela época, a palavra é medo”, diz dona Dalva que, com seu marido, tomara a corajosa decisão de abolir este sentimento. Os militares não aliviaram e Manoel Dias foi cassado, pela segunda vez, em 1969.
Destemidos, Manoel e Dalva seguiram militando na esquerda, exercendo sistemática oposição ao regime militar. “Foi nesta época que conheci e fiquei muito amigo de Leonel Brizola, um político de fé e grande mestre para minha carreira política”, conta Manoel. Junto com outras eminentes figuras políticas do Brasil, que se alinhavam na oposição, criaram o MDB para ser uma força contra o regime militar. “Criamos o slogan ‘vote no MDB você sabe porque’”, diz Manoel. Na situação ficaram aqueles políticos que apoiavam o regime, todos sob uma colcha de retalhos de um partido chamado Arena.
A história de Manoel Dias nos surpreendeu. É um homem de natureza genuinamente política. Tem paixão pelo que faz. Quando pergunto sobre seus hobbies, solta um sorriso tímido. Dona Dalva mais uma vez intervém: “Eles querem saber o que você gosta de fazer quando não está trabalhando”. Mas Maneca, como gosta de definir seu amigo Ruy Motta, “é o último dos moicanos da política brasileira”, ou seja, um político de corpo e alma. “Meu hobby é a política”, responde Manoel rindo abertamente. E ele fala com sinceridade. Admite que gosta de vinho, teatro, diz ter um gosto musical bem eclético, que vai do samba ao jazz e até algum rock´n´roll, mas, em minutos, lá está Manoel falando novamente de política, de militância, de quando criou, com seu amigo Brizola, o PDT, de grandes realizações que inovaram, em dois anos à frente do Ministério do Trabalho, serviços para os trabalhadores do País. É disso que Manoel verdadeiramente gosta de conversar. “Bem, ele adora me mandar flores e muitas vezes vai caminhar na praia para fazer reflexões”, diz Dalva.
Manoel fica com a família aos finais de semana que, para ele, é sagrado. Dona Dalva não quer saber de morar em Brasília. De segunda à sexta, Manoel dá expediente na Capital Federal. Antes do fechamento desta matéria, ainda no ensaio fotográfico para a capa, deixou o Ministério do Trabalho e Emprego devido à reforma ministerial. Foi mais um cargo no currículo ilibado deste homem de natureza política. Pergunto se vai se aposentar, acabou de completar 77 anos. “Nada, nem pensar, agora sim vou me dedicar com mais afinco ao que gosto, à política e à Universidade Leonel Brizola”, diz entusiasmado. A Universidade, que ministra cursos à distância, é uma das poucas no País especializada na formação de políticos. Manoel sabe que fez uma gestão excepcional à frente da pasta do Trabalho e Emprego. Por onde passou em sua trajetória política de mais de 50 anos cultivou bons amigos e deixou legados positivos para o País. Teria motivos suficientes para se gabar de seus feitos, ser orgulhoso, mas é humilde, prefere falar de novos projetos e não dos feitos já realizados. Cultiva ainda, com impressionante vivacidade, a mesma alma daquele garoto revolucionário que impressionou a menina Dalva naquela inesquecível noite joanina lá em Içara.
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